26 de julho de 2016

Leitura e interpretação de crônica Walcyr Carrasco (Meu cachorro)

Meu cachorro 
Walcyr Carrasco 


Meu cachorro está doente. É um husky e tem 14 anos. Dizem os conhecedores da raça que 12 anos é o tempo normal de vida. Mas sempre tive esperança de que fosse muito além. A mãe viveu até os 17. Seu nome é Uno. Não é muito comum, mas tem um motivo. Meu irmão e minha cunhada, há oitos anos, resolveram montar um canil em Campinas. Só de huskies. Compraram macho e fêmea de uma linhagem gloriosa. O avô, importado do Canadá, foi até capa de revista especializada. Registraram o canil. Alimentaram o casal, deram vacinas e prepararam-se para fazer fortuna. Logo uma ninhada estaria a caminho. Meu irmão fez as contas. Na época, o husky era muito valorizado. Com um certo número de cãezinhos, teria um bom lucro! 
- Serão dez, onze? - sonhava minha cunhada Bia. 
Nasceu um. Sim, um somente! Ganhou o nome de Uno, e me foi dado de presente. A grana ficou na imaginação. 
Uno me acompanha desde então, em várias fases da minha vida. Até no desemprego! Cheguei a escrever crônicas para uma revista canina usando seu nome e sua foto. Também um livro infantojuvenil, Mordidas que podem ser beijos, em que é o protagonista. Muita coisa inventei. Mas não sua mania de fugir de casa. Quando morei numa chácara na Granja Viana, Uno escalava o alambrado com a agilidade de um gato. Assim são os huskies, um tanto felinos. Disparava até o lago e fugia com um pato entre os dentes. Eu que me visse às voltas com a direção do condomínio - donos são para quebrar o galho, devem pensar os cachorros. Escondia-se na reserva florestal e só voltava ao entardecer, com o estômago cheio! 
Um terror, o meu cachorro! Duas vezes, bravamente, capturou ouriços. Dezenas de espinhos penetraram seu pelo. Entraram em sua boca. Eu nunca vira um espinho de ouriço. É duro, pontudo! Impressionante. Fiquei a seu lado enquanto o veterinário arrancava um por um. 
Mudei para a cidade. Meu cachorro envelheceu e passa longas horas deitado a meu lado vendo televisão. Deve achar um absurdo tantos tiros, beijos, lágrimas e juras de amor. Gosta de, simplesmente, ficar do meu lado. Ao olhá-lo, tenho uma sensação de conforto. Às vezes se levanta, bota a cabeça nas minhas pernas e eu coço suas orelhas. Sua boca se estica. Tenho a impressão de que é um sorriso. 
Há algum tempo começou a ficar doente. Ainda parece saudável. Seu pelo castanho brilha. Mas surge uma coisa aqui, outra ali. Toma remédio para o coração. Laxantes. Chega a uivar baixinho - huskies não latem. 
É a terceira vez que o envio ao veterinário em duas semanas. Agora, nem conseguia ficar em pé, de tão frágil. Sinto angústia só de pensar em sua imensa solidão, longe do tapete onde costuma dormir, sendo picado, mal comendo e, principalmente, sem alguém que lhe acaricie o pelo. A doença deve ser um mistério para ele mesmo. 
O amor de um cão é incondicional. Vejo mendigos na rua acompanhados de cachorros esquálidos que não os abandonam e até os protegem nas noites escuras. Vejo crianças a quem o cão ajuda a conhecer o afeto. Eu sei que meu cachorro está partindo. Se não for agora será daqui a semanas ou meses, pois uma coisa vira outra, e outra. Ou ele não conseguirá resistir ou chegará a um ponto em que terei de dar um nó no coração e abreviar seu sofrimento. Eu tenho de resistir e fazer o melhor. Coçar sua barriga e falar palavras docemente. E, se puder, quando chegar a hora, colocá-lo em meu colo e dizer quanto o amo. 
Quando me sentei diante do computador, queria escrever linhas engraçadas, repletas de bom humor. Foi impossível. Meu sentimento falou mais alto. Quem já amou um cão entende minha dor. 

Revista Veja São Paulo. São Paulo, 15 ser. 2006.
 Walcyr Carrasco (1951) nasceu na cidade de Bernardino de Campos, em São Paulo. É jornalista e escritor - escreve crônicas, telenovelas, peças teatrais -, tem vários livros publicados. 

1. O que parece motivar Walcyr Carrasco a escrever essa crônica? 

2. Que relação esse motivo tem com a realidade? 

3. Quem são os leitores supostos dessa crônica? Por quê? 

4. Qual é o ponto de vista narrativo que Walcyr Carrasco adota em sua crônica? 



Gabarito

1. Uma experiência pessoal. A motivação para a crônica é uma experiência que, supostamente, o autor Walcyr Carrasco tenha vivido e queira compartilhar com os leitores da revista. 

2. O fato é, pelo que se depreende da leitura, real, do cotidiano do autor. 

3. Os leitores da revista Veja São Paulo e, entre esses, especificamente, os que são capazes de "entender a dor" do escritor (como é dito na linha final do texto). Os primeiros por serem os leitores da revista em si, os segundos por terem um motivo para se identificar com o texto.

4. Ponto de vista interno, com narrador em primeira pessoa.