27 de setembro de 2016

Artigo de opinião 8ºano - A mania nacional da transgressão leve


A mania nacional da transgressão leve 
Michael Kepp 

**Gabarito no final**

Pequenos delitos são transgressões leves que passam impunes e, no Brasil, estão tão institucionalizados que os transgressores nem têm ideia de que estão fazendo algo errado. Ou então acham esses "miniabusos" irresistíveis, apesar de causarem "minidanos" e/ou levarem a delitos maiores. Esses maus exemplos são também contagiosos. E, em uma sociedade na qual proliferam, ser um cidadão-modelo exige que se reme contra uma poderosa maré ou que se beire a santidade. 
Alguns pequenos delitos - fazer barulho em casa a ponto de incomodar os vizinhos ou usar as calçadas como depósito de lixo e de cocô de cachorro - diminuem a qualidade de vida em pequenas, as significativas, doses. Eles ilustram a frase do escritor Millôr Fernandes: "Nossa liberdade começa onde podemos impedir a dos outros". 
No ano passado, o grupo de adolescentes que furou a enorme fila para assistir ao show gratuito de Naná Vasconcelos, na qual eu e outros esperávamos por horas, impediu nossa liberdade. Os jovens receberam os ingressos gratuitos que, embora devessem ser nossos, se esgotaram antes de chegarmos à bilheteria. 
A frase de Millôr também cai como uma luva para o casal que recentemente pediu a um amigo - na minha frente, na fila de bebidas, no intervalo de uma peça - que comprasse comes e bebes para ambos. O fura-fila indireto me irritou não só porque demorou mais para me atenderem, mas também porque o segundo ato estava prestes a começar. Qual é a diferença deles para os motoristas que me ultrapassam pelo acostamento nas estradas e depois furam a fila, atrasando minha viagem? E que dizer daqueles motoristas que costuram atrás das ambulâncias? 
Outros pequenos delitos causam danos porque representam uma pequena parte da reação em cadeia que corrói o tecido social. Os brasileiros que contribuem para a rede de consumo de drogas não são apenas os que as compram, mas até os que as consomem de vez em quando em festas. Uma simples tragada liga você, mesmo que de modo ínfimo, ao traficante e à bala perdida, mas atos aparentemente tão inócuos e difíceis de condenar nos forçam a pensar no que constitui um pequeno delito. 
Por exemplo, que dano social pode ser causado pelo roubo de "lembrancinhas" - de toalhas e cinzeiros de hotel a cobertores de companhias aéreas? Bem, os hotéis e companhias aéreas compensam os custos de substituir esses objetos aumentando levemente o preço. Os varejistas fazem o mesmo para compensar as perdas com pequenos furtos. 
Outros pequenos delitos são mais fáceis de classificar, mas igualmente tentadores de cometer. Veja o caso da pessoa que não diz ao caixa que recebeu por engano uma nota de R$ 50 em vez da correta nota de R$10. Ou do garoto que obedece ao trocador, passa por baixo da roleta e lhe passa uma nota de R$ 1 em vez de pagar à empresa de ônibus R$ 1,60. Esse suborno não é igual a pagar à polícia uma propina para se safar? Essas caixinhas não seriam também crias do famoso caixa dois, que já virou uma instituição? 
Um dos meus vizinhos disse que alguns desses pequenos delitos, como vários tipos de caixa dois, são fruto da necessidade. Ele escreve, embora não assine, monografias para que universitários preguiçosos/ocupados terminem seus cursos. É assim que põe comida na mesa. Apesar de defender sua atividade antiética dizendo que "a fome também é antiética", ele bem que poderia perder 20 quilos. 
Outro vizinho vendeu sua cobertura no Rio com uma vista espetacular da floresta da Tijuca porque descobriu que, no prazo de um ano, um arranha-céu seria construído, acabando com a vista e desvalorizando o imóvel em R$ 50 mil. Ele disse isso aos compradores? Não. E eu também não considero esse delito tão pequeno diante do valor do prejuízo. 
Apesar de os delitos pequenos estarem institucionalizados demais para notar ou serem tentadores demais para resistir, dizer "não" a eles beneficia a sociedade como um todo. E um "não" vigoroso o bastante pode alertar os distraídos e os fracos de espirito para que, em uma sociedade que se guia pela "lei de Gerson", nossa bússola moral possa nos apontar o caminho. 

KEPP, Michael. Folha de S.Paulo. São Paulo. 26 ago. 2004. Folha Equilíbrio. p. 9.

GLOSSÁRIO

transgressão: ato de violar ou desrespeitar uma ordem, lei ou regra. 
impune: não punido: sem o devido castigo. 
institucionalizado: que se tornou oficial; que foi apresentado publicamente como verdade. 
proliferar: aumentar. 
delito: crime. 
tecido social: organização da sociedade; forma como a sociedade esta organizada. 
inócuo: que não causa mal. 
varejista: aquele que faz a venda diretamente ao comprador. 
suborno: corrupção, ato de dar dinheiro a fim de conseguir alguma coisa ilegalmente. 
propina: gorjeta, gratificação. 
caixa dois: contabilidade não declarada para não se pagar tributo. 
monografia: trabalho escrito dentro de determinadas normas. 
antiético: aquilo que não é ético, isto é, que não é moral, não é correto, não segue regras de um grupo social ou de uma sociedade. 
"lei de Gerson": referência à frase de uma propaganda em que o ex-jogador de futebol Gerson dizia: "É preciso levar vantagem em tudo!". 
bússola: instrumento que serve para guiar, determinar a posição de um lugar ou de algo. 
moral: que tem costumes corretos de acordo com as regras estabelecidas por um grupo de pessoas; que ensina, educa; que tem valores corretos, desejáveis, dignos. 

O texto que você leu é um artigo de opinião. Nele, o jornalista posiciona-se quanto à prática de pequenos delitos. 

** Artigo de opinião: texto geralmente publicado em jornais, em revistas ou na internet, com a interpretação ou opinião do autor que o assina, Pode ser escrito em primeira ou terceira pessoa. 

QUESTÕES DE INTERPRETAÇÃO

1. Quem assina o artigo de opinião lido? 

2. O texto está escrito em que pessoa? Dê um exemplo que comprove sua resposta. 

3. Abaixo, os delitos estão divididos em quatro grupos. Localize no artigo e transcreva dois exemplos de cada grupo de delito.

Grupo A - Que prejudicam a qualidade de vida de outras pessoas e impedem sua liberdade.
Grupo B - Que perturbam as relações sociais e causam danos à sociedade toda.
Grupo C - Que são tentadores.
Grupo D - Que são justificados como fruto da necessidade. 

4. Explique a frase: "Esses maus exemplos são também contagiosos".

5. Releia este trecho do texto. 

[...] ser um cidadão-modelo exige que se reme contra uma poderosa maré ou que se beire a santidade. 

6. Em seu dia a dia, você observa algum dos delitos apontados no texto? Qual ou quais? Você considera leve(s) esse(s) delito(s)? Por quê? Conversem a respeito da opinião do autor do texto sobre o que ele considera "mania nacional. 

7. O autor do texto revela-se irônico e sarcástico, isto é, faz zombaria, mostra o que há por trás das situações e dos comportamentos que menciona. Sobre o vizinho que faz trabalhos para estudantes preguiçosos/ocupados e diz que "a fome também é antiética", qual é a ironia feita pelo autor? 

8. No texto, o autor empregou recursos estilísticos, como a linguagem figurada. Releia os seguintes trechos: 

[...] ser um cidadão-modelo exige que se reme contra uma poderosa maré ou que se beire a santidade. 
Apesar de os delitos pequenos estarem institucionalizados demais para notar [...] dizer "não" a eles beneficia a sociedade como um todo. E um "não" vigoroso o bastante pode alertar os distraídos e os fracos de espírito para que, em uma sociedade que se guia pela "lei de Gerson", nossa bússola moral possa nos apontar o caminho. 

Relacione as alternativas que correspondam aos significados de: 

[   ] "que se reme contra uma poderosa maré"; 
[   ] "que se beire a santidade"; 
[   ] "alertar os distraídos [...] para que [...] nossa bússola moral possa nos apontar o caminho". 

a) Conhecer as regras e saber as atitudes corretas para ensinar aos outros a melhor forma de agir. 
b) Fazer diferente daqueles que praticam pequenos delitos. 
c) Ser extremamente correto, ter conduta exemplar.