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XXXIII
O trecho abaixo foi extraído do capítulo XXXIII de Iracema e mostra o batismo de Poti, amigo de Martim.
[...] Poti levantava a taba de seus guerreiros na margem do rio e esperava o irmão que lhe prometera voltar. Todas as manhãs subia ao morro das areias e volvia os olhos ao mar, para ver se branqueava ao longe a vela amiga.
Afinal volta Martim de novo às terras, que foram de sua felicidade, e são agora de amarga saudade. Quando seu pé sentiu o calor das brancas areias, em seu coração derramou-se um fogo, que o requeimou: era o fogo das recordações que ardiam como a centelha sob as cinzas.
[...]
Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco, para fundar com ele a mairi dos cristãos. Veio também um sacerdote de sua religião, de negras vestes, para plantar a cruz na terra selvagem.
Poti foi o primeiro que ajoelhou aos pés do sagrado lenho; não sofria ele que nada mais o separasse de seu irmão branco. Deviam ter ambos um só deus, como tinham um só coração.
Ele recebeu com o batismo o nome do santo, cujo era o dia; e o do rei, a quem ia servir, e sobre os dois o seu, na língua dos novos irmãos. Sua fama cresceu e ainda hoje é o orgulho da terra, onde ele primeiro viu a luz.
A mairi que Martim erguera à margem do rio, nas praias do Ceará, medrou. Germinou a palavra do Deus verdadeiro na terra selvagem; e o bronze sagrado ressoou nos vales onde rugia o maracá. [...]
ALENCAR, José de. Iracema. Porto Alegre: 2002. p.134-135. [Fragmento].
VOCABULÁRIO
Mairi: nome dado pelos índios às cidades ou povoações dos homens brancos.
Medrou: prosperou, cresceu.
Maracá: chocalho indígena usado em festas e em cerimônias religiosas e guerreiras.
INTERPRETAÇÃO DO TEXTO
1. Qual é a missão de Martim ao voltar?
a) Transcreva o trecho em que essa missão fica evidente.
b) Ao tratar da conversão dos indígenas, Alencar consegue abandonar sua visão de homem branco e civilizado? Explique.
2. Martim e Poti representam, respectivamente, a cultura europeia e a indígena. Como se comporta Poti diante da possibilidade de converter-se à religião de Martim?
> O que simboliza, do ponto de vista cultural, a conversão de Poti?
3. Releia dois trechos de Iracema.
"O velho soabriu as pesadas pálpebras, e passou do neto ao estrangeiro um olhar baço. Depois o peito arquejou e os lábios murmuraram:
— Tupã quis que estes olhos vissem, antes de se apagarem, o gavião branco junto da narceja."
"Poti foi o primeiro que ajoelhou aos pés do sagrado lenho; [...] Deviam ter ambos um só deus, como tinham um só coração. [...]
Germinou a palavra do Deus verdadeiro na terra selvagem; e o bronze sagrado ressoou nos vales onde rugia o maracá."
> O que pode justificar a presença dessa aparente visão contraditória do processo de aculturação do índio em duas cenas de uma mesma obra? Lembre-se de considerar o contexto da época.
4. Darcy Ribeiro, antropólogo brasileiro do século XX, ao analisar os desdobramentos do contato entre índios e portugueses durante o processo de colonização, faz a seguinte afirmação:
[...] Mais tarde, com a destruição das bases da vida social indígena, a negação de todos os seus valores, o despojo, o cativeiro, muitíssimos índios deitavam em suas redes e se deixavam morrer, como só eles têm o poder de fazer. Morriam de tristeza, certos de que todo o futuro possível seria a negação mais horrível do passado, uma vida indigna de ser vivida por gente verdadeira.
Sobre esses índios assombrados com o que lhes sucedia é que caiu a pregação missionária, como um flagelo. [...] A cristandade surgia a seus olhos como o mundo do pecado, das enfermidades dolorosas e mortais, da covardia, que se adonava do mundo índio, tudo conspurcando, tudo apodrecendo. [...]
RIBEIRO. Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. 1995. p. 43. (Fragmento).
> Explique por que Darcy Ribeiro afirma que a cristandade tomou conta da vida dos indígenas, "contaminando" toda a sua cultura.
5. Alencar apresenta uma visão positiva em relação à conversão de Poti. O texto de Darcy Ribeiro leva à reavaliação dessa visão. Que "releitura" podemos fazer da cena final de Iracema?
6. (Unicamp) No excerto abaixo, o romance Iracema é aproximado da narrativa bíblica:
Em Iracema, [...] a paisagem do Ceará fornece o cenário edênico para uma adaptação do mito da Gênese. Alencar aproveitou até o máximo as similaridades entre as tradições indígenas e a mitologia bíblica [...] Seu romance indianista [...] resumia a narrativa do casamento inter-racial, porém [...] dentro de um quadro estrutural pseudo-histórico mais sofisticado, derivado de todo um complexo de mitos bíblicos, desde a queda Edênica ao nascimento de um novo redentor.
TREECE. David. Exilados. aliados. rebeldes: o movimento indianista. a política indigenista e o Estado-Nação imperial. São Paulo: Nankin/Edusp. 2008. p. 226. 258-259. (Fragmento).
Partindo desse comentário, responda às questões:
a) Que associação se pode estabelecer entre os protagonistas do romance e o mito da Queda com a consequente expulsão do Paraíso?
b) Qual personagem poderia ser associada ao novo redentor? Por quê?