15 de março de 2019

Interpretação de CRÔNICA com gabarito - Da lei (Ferreira Gullar)



Aquele acreditava na lei. Funcionário do IAPC [Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários], sabia de cor a Lei Orgânica da Previdência. Chegava mesmo a ser consultado pelos colegas sempre que surgia alguma dúvida quanto à aplicação desse ou daquele princípio. Eis que um dia nasce-lhe um filho e ele, cônscio de seus direitos, requer da Previdência o auxílio natalidade. Prepara o requerimento, junta uma cópia da certidão de nascimento da criança e dá entrada no processo. Estava dentro da lei, mas já na entrada a coisa enguiçou. 
– Não podemos receber o requerimento sem o atestado do médico que assistiu a parturiente.
– A lei não exige isso – replicou ele.
– Mas o chefe exige. Tem havido abusos.
Estava montado o angu. O rapaz foi até o chefe, que se negou a receber o requerimento.
– Vou aos jornais – disse-me o crédulo. – Eles têm de receber o requerimento, como manda a lei.
Tentei aconselhá-lo: a justiça é cega e tarda, juntasse o tal atestado médico, era mais simples.
– Não junto. A lei não me obriga a isso. Vou aos jornais.
Foi aos jornais. Aliás, foi a um só, que deu a notícia num canto de página, minúscula. Ninguém leu, mas ele fez a notícia chegar até o chefe que, enfurecido, resolveu processá-lo: a lei proíbe que os funcionários levem para os jornais assuntos internos da repartição.
– Agora a lei está contra você, não?
– Não. A lei está comigo.
Estava ou não estava, o certo é que o processo foi até a Procuradoria e saiu dali com o seguinte despacho: suspenda-se o indisciplinado.
Era de ver-se a cara de meu amigo em face dessa decisão. Estava pálido e abatido, comentando a sua perplexidade. Mas não desistiu:
– Vou recorrer.
Deve ter recorrido. Ainda o vi várias vezes contando aos colegas o andamento do processo, meses depois. Parece que já nem se lembra do auxílio-natalidade – a origem de tudo – e brigará até o fim da vida, alheio a um aforismo que, por ser brasileiro, inventei: “Quem acredita na lei, esta lhe cai em cima.”

(O melhor da crônica brasileira, 2013.)

1. Em relação à Justiça, a posição do narrador é de
a) indiferença.
b) ingenuidade.
c) confiança.
d) perplexidade.
e) incredulidade.

2. Verifica-se o emprego de expressão que destoa da variedade linguística predominante no texto em:
a) “Deve ter recorrido. Ainda o vi várias vezes contando aos colegas o andamento do processo, meses depois.” 
b) “– Vou aos jornais – disse-me o crédulo. – Eles têm de receber o requerimento, como manda a lei.”
c) “Estava montado o angu. O rapaz foi até o chefe, que se negou a receber o requerimento.” 
d) “Prepara o requerimento, junta uma cópia da certidão de nascimento da criança e dá entrada no processo.”
e) “– Não podemos receber o requerimento sem o atestado do médico que assistiu a parturiente.”

3. Ao se transpor para o discurso indireto o trecho “– A lei não exige isso – replicou ele”, o verbo sublinhado assume a forma:
a) exigia.
b) exigiu.
c) exigira.
d) exigiria.
e) exigisse.


Resolução questão 1
O aforismo criado pelo narrador no desfecho confirma o posicionamento dele quanto à injustiça de que foi vítima o personagem que “acreditava na lei”. Resposta E. 

Resolução questão 2
A variedade linguística predominante no texto é a padrão, formal. Porém na frase “Estava montado o angu”, o cronista usa a variedade coloquial, informal, em que “montado o angu” significa “iniciada a confusão”. Resposta C.

Resolução questão 3
Transpondo-se para o discurso indireto o diálogo, tem-se: Ele replicou que a lei não exigia aquilo. O verbo no presente, no discurso direto, passa para o pretérito imperfeito, no discurso indireto. Resposta A.