28 de outubro de 2016

Interpretação do conto A terceira margem do rio (Guimarães Rosa)


O trecho que você vai ler é a abertura do conto "A terceira margem do rio". Quem narra a história é um homem que, ainda menino, viu seu pai partir para viver em uma pequena canoa no meio do rio. O narrador-personagem passa a vida em função dessa presença/ausência, até que finalmente decide ir ao encontro do pai. 

A terceira margem do rio 

Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente - minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa. 
Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a ideia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta. Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: 
 "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retomou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. 
Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo - a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa. 
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. [...] 

GUIMARÃES ROSA, João. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: ova Fronteira, 2001. p. 79-80.

VOCABULÁRIO DE APOIO

arqueado: com forma de arco, curvado 
bramar: falar colericamente, enfurecer-se 
encalcar: apertar, comprimir 
estúrdio: estranho, esquisito 
grota: cavidade próxima à margem de um rio 
matula: comida, provisões para viagem 
popa: parte posterior de uma embarcação 
rijo: rígido, duro 
vinhático: espécie de árvore de excelente madeira de cor amarela 

1. Em relação à partida do pai do narrador-personagem, este e sua mãe expressam reações diferentes. Caracterize a atitude de cada um a partir de suas falas. 

2. Como se configuram o tempo e o espaço do conto, de acordo com o fragmento lido? 

3. Sabendo-se que o conto estabelece uma identificação entre a presença/ausência do pai e a imagem do rio, formule algumas hipóteses para interpretar o título do conto. 

GABARITO

1. Mãe: "Cê vai, ocê fique, você nunca volte". A mãe manifesta uma atitude impassível e resoluta ("alva de pálida, mascou o beiço e bramou"). O acréscimo sucessivo de uma letra ao pronome pessoal indica um afastamento deliberado do pai. 
Narrador-personagem: "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" O filho tem uma atitude relutante, ao mesmo tempo atraído para perto do pai e temeroso da ira da mãe. Professor: É importante observar que a atitude e os sentimentos do filho são ambíguos e complexos. O narrador - sendo o próprio filho - não dá ao leitor uma interpretação fechada para os fatos. A partida do pai é um acontecimento que escapa totalmente à compreensão do filho e é o motor do conto. 

2. É quase impossível situar historicamente o conto, pois a narrativa não oferece marcas temporais. Em termos espaciais, podemos inferir marcas da terra brasileira, como a canoa de vinhático e a sombra parecida com um jacaré. 

3. Sugestão de resposta: O rio pode estar relacionado com a morte, com o inconsciente, com a loucura, com o mundo dos sonhos. Pode ser entendido como um lugar misterioso e enigmático, mágico e irracional. O silêncio do rio e a profundidade de suas águas estão associados ao silêncio do pai e à sua ausência. A terceira margem do rio pode expressar a dificuldade de relacionamento entre pai e filho, pode ser um lugar para onde se quer fugir, um lugar místico onde o pai vai viver como um eremita, e tantos outros lugares simbólicos. Professor: Há várias possibilidades de associação entre o rio e o pai ausente. É interessante explorar as diversas formas de apropriação dos sentidos do conto, de acordo com o repertório cultural dos alunos e o grau de maturidade e de envolvimento com o texto.