24 de março de 2018

Leitura de textos sobre o que é literatura (ENEM)


Há várias maneiras de conceituar a literatura, e, ao longo do tempo, muitos estudiosos dedicaram-se a refletir sobre o tema. 
Leia, a seguir, a reflexão de dois pesquisadores brasileiros do século XX sobre as especificidades da literatura e da leitura. 

A literatura, como toda arte, é uma transfiguração do real, é a realidade recriada através do espírito do artista e retransmitida através da língua para as formas, que são os gêneros, e com os quais ela toma corpo e nova realidade. Passa, então, a viver outra vida, autônoma, independente do autor e da experiência de realidade de onde proveio. Os fatos que lhe deram às vezes origem perderam a realidade primitiva e adquiriram outra, graças à imaginação do artista. São agora fatos de outra natureza, diferentes dos fatos naturais objetivados pela ciência, ou pela história, ou pelo social. 
O artista literário cria ou recria um mundo de verdades que não são mensuráveis pelos mesmos padrões das verdades fatuais. Os fatos que manipula não têm comparação com os da realidade concreta. São verdades humanas gerais, que traduzem antes um sentimento de experiência, uma compreensão e um julgamento das coisas humanas, um sentido da vida, e que fornecem um retrato vivo e insinuante da vida. 
A literatura é, assim, vida, parte da vida, não se admitindo que possa haver conflito entre uma e outra. Através das obras literárias, tomamos contato com a vida, nas suas verdades eternas, comuns a todos os homens e lugares, porque são as verdades da mesma condição humana. 

COUTINHO, Afrânio. Notas de teoria literária
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. p. 9-10. 

[...] A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. Ao ensaiar escrever sobre a importância do ato de ler, eu me senti levado - e até gostosamente - a "reler" momentos fundamentais de minha prática, guardados na memória, desde as experiências mais remotas de minha infância, de minha adolescência, de minha mocidade, em que a compreensão crítica da importância do ato de ler se veio em mim constituindo. 

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 
São Paulo: Cortez, 1989. p. 9. 

Para o educador pernambucano Paulo Freire, o ato de ler é importante porque amplia nossa possibilidade de ler o mundo. Em sua concepção, a leitura de um texto exige do leitor mais que a decodificação das palavras: exige a realização da leitura de mundo, a fim de que perceba a importância social do que lê e o contexto em que o texto foi produzido e em que é lido. 
A leitura é, portanto, a relação estabelecida entre o mundo do texto e o mundo do leitor. O texto oferece ao leitor uma proposta de leitura, a qual varia de acordo com o propósito comunicativo, o gênero, as intencionalidades do autor. O leitor, por sua vez, ao realizar a leitura do texto, coloca a serviço dela seus conhecimentos prévios, suas expectativas, sua memória, sua visão de mundo, seus pensamentos e sentimentos, suas experiências de leituras. Logo, o ato de leitura é um ato de produção de sentido, resultado da relação entre esses dois mundos. 

De modo geral, todo texto oferece ao leitor possibilidades interpretativas, em maior ou em menor grau. Isso significa dizer que há categorias de textos que, pela própria natureza, não oferecem ao leitor um leque muito variado de interpretações (como textos de caráter jornalístico, científico ou acadêmico). Já outros textos (como os ficcionais) exigem do leitor o preenchimento de espaços a serem completados no ato da leitura, de maneira a interpretar as pistas que são deixadas (intencionalmente ou não) pelo autor. 
Por pacto de leitura compreende-se um contrato implícito estabelecido entre autor e leitor, mediado pelo texto, no qual o leitor aceita de antemão as regras do universo ficcional criadas pelo autor, as pistas deixadas por ele no texto e, com base nelas, constrói o sentido do texto, dando a ele sua interpretação. 
É esse acordo prévio que permite, por exemplo, que nos assustemos quando assistimos a um filme de suspense, ou que nos emocionemos com determinado personagem quando lemos um conto, mesmo sabendo que é ficcional. 
Portanto, o modo como lemos uma notícia de jornal é e deve ser diferente do modo como lemos um poema. Isso se dá porque cada texto exige do leitor um modo de ler específico, considerando suas características essenciais, ou seja, as convenções próprias do gênero ou da esfera discursiva. Logo, entre leitor-texto-autor estabelecem-se relações e pactos de leitura específicos. No caso da leitura de textos ficcionais, o leitor precisa atentar para seu caráter de simulacro, isto é, de (re)invenção da realidade, de simulação de seres, sentimentos, pensamentos e situações, os quais dão uma impressão de ser reais, mas não o são. 
Assim, como todas as formas de arte, a literatura, na sua especificidade que é a de um trabalho elaborado com as palavras, cria realidades ficcionais, discute valores e estabelece um diálogo estético e crítico com a realidade. Logo, o texto literário, assim como outras formas de arte, tem a característica de promover deslocamentos, recriar realidades imaginárias, representar situações fictícias, isso tudo por meio de um trabalho com formas linguísticas elaborado para produzir, antes de mais nada, efeitos estéticos. 
Assim, o escritor de textos literários é um criador de mundos imaginários que, por meio de um cuidadoso arranjo das palavras, pode despertar sensações e sentimentos, promover o questionamento acerca da realidade empírica, representar de forma muito particular os dramas existenciais, as alegrias, as dificuldades, os sonhos, as frustrações próprias da humanidade. Logo, ler um texto literário requer disposição para (re)construir sentidos, considerando as pistas deixadas pelo autor. Para que isso ocorra, o modo como as palavras são usadas, os sentidos contidos nas entrelinhas e as sutilezas do estilo do autor devem ser observados e levados em conta na interpretação do texto. 
Portanto, reconhecer um texto como literário consiste em encontrar nele esse trabalho com a linguagem, essa realidade inventada, essa construção de simulacros, cuja função não é utilitária, mas fundamentalmente estética, visto que seu objetivo principal é o de promover a fruição, ou seja, o prazer da leitura, a felicidade de encontrar algo novo ou surpreendente.