13 de agosto de 2023

Interpretação do conto “A menina sem palavra” - Mia Couto - Discurso direto e indireto - 9ºano

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Leia o conto “A menina sem palavra”, de um dos mais importantes autores africanos contemporâneos e responda às questões.

A menina sem palavra
(segunda estória para a Rita)

A menina não palavreava. Nenhuma vogal lhe saía, seus lábios se ocupavam só em sons que não somavam dois nem quatro. Era uma língua só dela, um dialecto pessoal e intransmixível? Por muito que se aplicassem, os pais não conseguiam percepção da menina. Quando lembrava as palavras ela esquecia o pensamento. Quando construía o raciocínio perdia o idioma. Não é que fosse muda. Falava em língua que nem há nesta actual humanidade. Havia quem pensasse que ela cantasse. Que se diga, sua voz era bela de encantar. Mesmo sem entender nada as pessoas ficavam presas na entonação. E era tão tocante que havia sempre quem chorasse.
Seu pai muito lhe dedicava afeição e aflição. Uma noite lhe apertou as mãozinhas e implorou, certo que falava sozinho:
— Fala comigo, filha!
Os olhos dele deslizaram. A menina beijou a lágrima. Gostoseou aquela água salgada e disse:
— Mar...
O pai espantou-se de boca e orelha. Ela falara? Deu um pulo e sacudiu os ombros da filha. Vês, tu falas, ela fala, ela fala! Gritava para que se ouvisse. Disse mar, ela disse mar, repetia o pai pelos aposentos. Acorreram os familiares e se debruçaram sobre ela. Mas mais nenhum som entendível se anunciou.
O pai não se conformou. Pensou e repensou e elabolou um plano. Levou a filha para onde havia mar e mar depois do mar. Se havia sido a única palavra que ela articulara em toda a sua vida seria, então, no mar que se descortinaria a razão da inabilidade.
A menina chegou àquela azulação e seu peito se definhou. Sentou-se na areia, joelhos interferindo na paisagem. E lágrimas interferindo nos joelhos. O mundo que ela pretendera infinito era, afinal, pequeno? Ali ficou simulando pedra, sem som nem tom. O pai pedia que ela voltasse, era preciso regressarem, o mar subia em ameaça.
— Venha, minha filha!


Mas a miúda estava tão imóvel que nem se dizia parada. Parecia a águia que nem sobe nem desce: simplesmente, se perde do chão. Toda a terra entra no olho da águia. E a retina da ave se converte no mais vasto céu. O pai se admirava, feito tonto: por que razão minha filha me faz recordar a águia?
— Vamos filha! Caso senão as ondas nos vão engolir.
O pai rodopiava em seu redor, se culpando do estado da menina. Dançou, cantou, pulou.
Tudo para a distrair. Depois, decidiu as vias do facto: meteu mãos nas axilas dela e puxou-a. Mas peso tão toneloso jamais se viu. A miúda ganhara raiz, afloração de rocha?
Desistido e cansado, se sentou ao lado dela. Quem sabe cala, quem não sabe fica calado? O mar enchia a noite de silêncios, as ondas pareciam já se enrolar no peito assustado do homem. Foi quando lhe ocorreu: sua filha só podia ser salva por uma história! E logo ali lhe inventou uma, assim:
Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como uma baloa.
Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebentamundo. A lua se cintilhaçou em mil estrelinhações. O mar se encrispou, o barco se afundou, engolido num abismo. A praia se cobriu de prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário de todas as direções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares. Olhou o horizonte e chamou:
— Pai!
Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se aguava? E foi assim. Essa foi uma vez.
Chegado a este ponto, o pai perdeu voz e se calou. A história tinha perdido fio e meada dentro da sua cabeça. Ou seria o frio da água já cobrindo os pés dele, as pernas de sua filha? E ele, em desespero:
— Agora, é que nunca.
A menina, nesse repente, se ergueu e avançou por dentro das ondas. O pai a seguiu, temedroso. Viu a filha apontar o mar. Então ele vislumbrou, em toda extensão do oceano, uma fenda profunda. O pai se espantou com aquela inesperada fractura, espelho fantástico da história que ele acabara de inventar. Um medo fundo lhe estranhou as entranhas. Seria naquele abismo que eles ambos se escoariam?
— Filha, venha para trás. Se atrase, filha, por favor...
Ao invés de recuar a menina se adentrou mais no mar. Depois, parou e passou a mão pela água. A ferida líquida se fechou, instantânea. E o mar se refez, um. A menina voltou atrás, pegou na mão do pai e o conduziu de rumo a casa. No cimo, a lua se recompunha.
— Viu, pai? Eu acabei a sua história!
E os dois, iluaminados, se extinguiram no quarto de onde nunca haviam saído.

COUTO, Mia. A menina sem palavra. In: COUTO, Mia. A menina sem palavra: histórias de Mia Couto. São Paulo: Boa Companhia, 2013. p. 89-94.

Mia Couto (1955-)
Mia Couto é o escritor moçambicano mais traduzido e divulgado no exterior e um dos mais conhecidos em Portugal. Em 2013, recebeu o Prêmio Camões, o mais prestigiado da língua portuguesa. A obra de Mia Couto traz narrativas inspiradas na linguagem oral e a influência do escritor brasileiro Guimarães Rosa.

1. Quem são os personagens principais desse conto?

2. Logo no início do conto, o narrador apresenta uma característica importante da menina. Que característica é essa?

3. Que situação apresentada no trecho rompe com o equilíbrio inicial do conto, introduzindo um conflito?

4. O pai decide levar a menina para ver o mar. Sobre isso, responda às questões:

a) O que teria motivado o pai a levar a menina para ver o mar?
b) Qual foi a reação da menina diante do mar?
c) Como o pai se sentiu diante da reação da filha ao ver o mar? O que ele fez para reverter essa situação?
d) Como última estratégia para animar a menina, o pai começa a contar uma história a ela. Qual foi o resultado disso?

5. Considere o desfecho do conto para responder às questões a seguir.
a) Os acontecimentos na praia fazem parte da realidade vivida pelos personagens do conto ou são fruto da imaginação deles?
b) Qual trecho do texto comprova a sua resposta ao item anterior? Escreva-o.

6. O conto é narrado em primeira ou em terceira pessoa? Como você concluiu isso?

7. A maioria das falas ocorre por meio do discurso direto ou indireto? Explique.

Gabarito